4 de fevereiro de 2014

Curso de Férias de Escrita Criativa


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Até então, nunca antes fizera uso em minha vida do tal sexto sentido. Bastava-me ver, ouvir, falar, saborear e tocar. Neste instante, porém, mais do que nunca, era preciso sentir. E sentia com toda ênfase que meu corpo era capaz de dar. Desde o início longínquo da extremidade dos pés até o tênue arrepiar de fios dos longos cabelos ondulados sobre a nuca, tudo em mim denunciava o temor e beirava o desespero. Uma tensão fria e calculista enrijecia-me os músculos, retesando os movimentos e silenciando a fala. 
Estava ali, mas não estava mais. E o nome disso era agonia, era angústia, era sofreguidão. Medo puro, em seu estado mais bruto.
— Minha pequena? Cadê ela? – questionava-me mentalmente, na velocidade da luz, enquanto olhava ao redor da sala ampla, não a encontrando em lugar algum, e já sendo conduzida ao pensamento seguinte... 
Maldita lógica. Não! O raciocínio lógico agora não. Não quero chegar aonde esse aperto no peito, esse calafrio na espinha, esse olhar temeroso de todos sobre mim conduz. Não quero crer, não quero ver, não quero sentir...  Meu pequeno serafim, cadê?
— Filha? Filha. Filhaaaaaaaaa... - consegui, enfim, perguntar, dizer, gritar antes de cair sobre os joelhos, aos prantos, no mais profundo vazio que se é capaz de sentir. 


Acordei.
Uma atmosfera glacial no quarto.
As luzes da manhã ainda ao longe das irregulares frestas da velha janela de madeira.
Só um sonho. Nada mais que um dos tortuosos sonhos dos últimos dias, onde a ideia da perda se fazia sentir abruptamente.
Puxei o cobertor até a altura do queixo e curvei o corpo na cama, encolhendo as pernas junto ao tórax, na pretensão de dormir um pouco ainda. 
O sono, porém, não veio. O resto das horas passei a espreita de mim, no silêncio, na escuridão e no calor das cobertas. Mas nada de revelador adveio da madrugada.
— Que acontece Ayla?  Que querem te dizer esses sonhos? – perguntei-me em voz alta, finalmente saltando da cama, rumo à cozinha, para por em prática um café.
E enquanto as horas adentravam o dia, um receio enorme do porvir crescia. Um ente querido partindo, por certo, mas quem? Papai, Gália, Rafael... Quem sabe meus queridos Krush ou Romeo. Mas filha? Que filha era essa, que se perdia em sonhos mil de criança, antes mesmo de a ter nos braços ou nas mãos em ciranda. Antes mesmo de ter para ela um pai qualquer que fosse.
Entretida nestes e outros pensamentos, Ayla nem se deu conta do pai que adentrava a cozinha, cheirando forte a bolo de milho.
— Bom dia minha filha. Acordou cedo. Algum problema?  
— Bom dia papai. Nada não, dormi cedo ontem.  Quero aproveitar o dia! -, respondi estalando-lhe um beijo doce na bochecha.  Mas que mania ele tinha de querer saber tudo sobre mim, adivinhar meus pensamentos e sentimentos.
— Hum. Que cheiro bom. Estou com fome – foi dizendo enquanto sentava e enchia a caneca de café. Vai à vila hoje? 
— Não sei, talvez. Estava pensando em selar Romeo e levar caldo e bolo de milho para Euripa. Faz tempo que não faço uma visita. 

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TCC

Travei! Olhei ao redor num relance e só pude ver os professores na mesa da banca e a plateia desaparecerem num clarão mental. Como mil holofotes refletidos sobre mim, por um instante que pareceu séculos, estive pelada (ainda que vestida). Estive cega e a cegueira me calou. Estive muda e a mudez.me ensurdeceu... Ensandeceu... Sei lá. As taxas, os índices, os percentuais apontados no Power Point, de repente, ganharam vida, crescendo e tomando a forma de dragões enraivecidos, cuspindo fogo sobre mim. O sangue, até então desaparecido das veias, retomou seu fluxo, percorrendo rapidamente o cérebro, reativando as sinapses, passando ligeiro pelo coração, ainda parado, e descendo feito água de chuva ladeira abaixo, no encontro certeiro da ponta dos pés. Ah, os pés... Neste momento, mais do que nunca, os melhores amigos.

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— Algo contida, algo transbordante. Por trás do enorme óculos de armação fina de metal, que pendia sobre um nariz curto e fino, diminuindo, ainda mais, os pequenos e profundos olhos escuros, subjugados por grossas sobrancelhas pretas surgia Daiany. Meio tímida, meio determinada, nada acanhada e muito comunicativa. Surpreendendo sempre pela vivacidade, pela criatividade emanada dos finos lábios róseos. 

— Olhou para os ponteiros do relógio de design moderno com pulseira de couro e tela preta. 19 horas. Finalmente! Finalmente a hora de despir a calça preta de corte reto, a camisa social cinza de finas listras pretas e brancas e descalçar os sapatos de bico. Que vontade ele tinha de enfiá-los para sempre numa caixa no fundo do guarda-roupas e nunca mais olhar para eles. A melhor sensação do dia era despir-se daquela farda, daquele disfarce... Sentir os pés descalços sobre o chão frio e tomar posse de si. 

—"Não pinte esse rosto que eu gosto e que é só meu. Marina você já é bonita com o que Deus te deu..." Olhou-se no espelho cantarolando mentalmente a letra da música. Sim, era bonita com o que Deus lhe dera. Um corpinho mignon e cabelos 'poim nho nhoim'. Ninguém era igual no mundo. Olhou-se ainda uma vez, confiante, convicta de sua beleza. Amava-se em cada detalhe e não tinha vergonha de Ser Marina. Os olhos tatuados no braço com laço vermelho infantil sobre eles sabiam bem transparecer a menina. Autêntica menina do rio...


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