26 de abril de 2011

A cultura que enriquece o Brasil

Essa matéria é sobre a comemoração do centenário da imigração japonesa no Brasil. Escrevi para a edição 393 da Revide, em 14 de março de 2008, e foi minha primeira matéria especial. Sinto orgulho dela. Agradeço aos entrevistados e a revista, pela oportunidade de escrever sobre um tema tão rico. Espero que gostem desse post "flashback".

“Às 9h30 do dia 18 de junho de 1908, o Navio Kasato Maru atracou no porto de Santos trazendo a bordo 165 famílias com 733 membros e mais 48 avulsos, além de 12 viajantes livres. Foram 52 dias de viagem a partir de Kobe e agora estavam diante do continente Sul-Americano. Cheios de esperança e inquietação diante do desconhecido...”

Porte pequeno. Estatura baixa, pouco peso, cabelos lisos e olhos rasgados. Inteligência, criatividade e competitividade. Respeito à instituição “família”, cultivo de tradições e preservação da honra. Assim se resume a natureza da raça japonesa. Um pouco desta essência pode ser vista sem a necessidade de se cruzar o ar ou o mar. No trabalho, na escola, no clube ou nas ruas do Brasil, é possível ver e conviver com o Japão.

Apesar de não constituírem uma das três raças formadoras do povo brasileiro (branca, indígena e negra), os japoneses vieram motivados pelo mesmo sentimento que move o país: a esperança. Milhares de “isseis”, primeira geração de imigrantes, cruzaram oceanos na tentativa de mudar seus destinos e chegaram cheios de marcas e sonhos.

Junto com portugueses, índios, africanos, italianos, espanhóis, árabes, chineses, alemães, entre outros povos, os isseis, nisseis, sanseis, yonseis e gosseis formam a nação. A modelo da capa desta edição, Tatiane Yamamura Sakamoto, 20 anos, estudante, é neta de imigrantes e espelha toda beleza da cultura e das tradições japonesas. (continua...)

Três histórias
Lembranças do artista - Dez da manhã. Shozo Mishima abre a porta de seu apartamento no Jardim Paulistano. As paredes repletas de quadros e as esculturas em madeira espalhadas na mesa de canto e no chão denunciam: ali vive um artista. Aos 81 anos, o nissei, que diz viver pela arte e adora shitake na manteiga, ainda sonha em morar na Europa. Guarda muitas lembranças da infância na fazenda onde os pais se instalaram ao chegar ao Brasil, em março de 1927.

Sendo a única família japonesa no local, com vizinhos negros e contato apenas esporádico com descendentes ao longo de quase vinte anos, Mishima não se faz de rogado ao afirmar, em tom baixo e pausado, “sou brasileiro”. “Meu pai tinha espírito aventureiro. Com apenas 18 anos resolveu se mudar para o Brasil. Ele trouxe minha mãe e meu tio, mais braços para o trabalho”, narra o artista.

Sedento por conversar, Mishima san (“san” tem o mesmo sentido de “senhor” e se aplica depois do nome) se levanta várias vezes do sofá para mostrar fotos, pinturas, esculturas, livros e seus “bonsais”, cultivados próximos à janela da lavanderia. Viúvo de uma brasileira, relembra momentos difíceis vividos durante o período de guerra, quando os imigrantes foram proibidos de falar japonês. “A integração cultural entre os dois países demorou mais por causa da guerra. A maior aceitação dos imigrantes só aconteceu quando as latinas começaram a namorar japoneses. Hoje, nossa cultura e culinária são comuns”, explica Mishima.

A filha do fotógrafo - Rodeada de máquinas fotográficas antigas, com um quadro ao fundo onde se lê “Pioneiro na Reportagem Social” e trazendo nas mãos o livro fotográfico do pai, “Ribeirão Preto pelo olhar de Tony Miyasaka”, a arquiteta de 43 anos, Elza Luli Miyasaka, não nega as origens.
Elza conta que o pai veio para o Brasil em 1934, aos dois anos. A decisão de emigrar foi da avó. Consolidada em terras brasileiras, a família nunca pensou em voltar a viver no Japão. “A maioria dos imigrantes veio pensando em ganhar dinheiro e voltar. No caso dos meus avós não foi assim”, relembra Elza.

Na cultura japonesa, o respeito à hierarquia e à honra da família são fundamentais. Um bom exemplo foi o início do envolvimento da família Miyasaka com a profissão de fotógrafo. Já no Brasil, o irmão mais velho de Tony, Takeshi, foi trabalhar em uma loja de fotografia. “O combinado era que ele ficaria dois anos trabalhando no lugar para aprender a profissão. Quando voltou dizendo que já havia aprendido e que poderia começar o próprio negócio, meu avô ordenou, em sinal de gratidão, que voltasse e ficasse mais dois anos na loja. Foi o que ele fez”, conta a arquiteta.

Dos costumes japoneses, um rigorosamente seguido na casa de Elza é comer Ozoni no primeiro dia do ano. A tradição de preparar o bolinho de moti (arroz) está repleta de simbologismo.

Documentário da imigração - O produtor Hossame Nakamura finaliza um documentário sobre a imigração japonesa na região de Ribeirão Preto, que deverá ser exibido nas festividades da comemoração do centenário, no dia 19 de junho. “A região recebeu os primeiros imigrantes. Depois, pelas más condições nas fazendas, eles se espalharam”, explica o produtor.
A história de seu avô, que desembarcou no Brasil em 1926, não se diferencia da vivida pela maioria. “Meu avô plantou algodão, hortaliça, milho, arroz, batata. Mais tarde, foi para Curitiba, onde constituiu família. Meu pai se tornou militar, moramos em muitas cidades e acabamos, por coincidência, voltando às origens”, conta Hossame.

Para o sansei, que se auto-denomina praticamente um “gaijin” (não-japonês), a síntese da imigração japonesa no Brasil está na miscigenação. Ele acredita que quebrar estereótipos seja a principal função da comemoração do centenário da imigração. “Existem muitas publicações a respeito da identidade japonesa, mas as perguntas a serem feitas devem ser: ‘O que é ser japonês? E o que é ser japonês no Brasil?’ O documentário mostra minha verdadeira identidade como descendente dos imigrantes”, argumenta.

Segundo Hossame, a diferença do processo de imigração japonesa foi a barreira imposta pela língua, que estabeleceu comportamentos de grupo. “Muitos viviam o Japão dentro do Brasil”, explica. Além disso, o japonês tem como característica própria abdicar de sua individualidade em prol do processo coletivo. “Durante o ano inteiro, há eventos da comunidade japonesa. Se você está disposto a se envolver, não fica em casa nos finais de semana”, brinca o produtor.

Caminho
No Templo Budista de Ribeirão Preto, chamado Tohoku Nambei Honganji, a ampulheta parece parar. O jardim com espécies naturais do Japão, o leve burburinho de água correndo, o canto dos pássaros e a arquitetura do templo transformam a atmosfera, remetendo à imagem cristalizada de um Japão sábio, paciente e silencioso.

Trajando um “kane” (espécie de roupão) com “kesa” dourado (faixa sobre o pescoço) e levando um “nenju” (rosário) no pulso, o monge Tadao Sawanaka nos recebe com um curto “bom dia” com forte sotaque japonês. Em tom de lamento, explica que os templos no Japão são abertos, para que as pessoas entrem e rezem a qualquer hora do dia. Aqui, no entanto, um portão de ferro com cadeado se põe entre o altar e os visitantes.

Tadao nasceu no Japão e veio para o Brasil em 1957, quando tinha 19 anos. Sem saber explicar a razão, diz que já viajou com a intenção de ficar. Aportou em Santos e acabou morando em Barretos, onde trabalhou como tratorista, sem entender o que a palavra significava. Aos 26 anos, começou a freqüentar o templo ribeirãopretano, que dirige há 10 anos, mesmo sem nunca ter pensado em se tornar um monge. Ele aproveita os finais de semana para visitar a família, que ainda mora em Barretos.

Desmistificando a idéia de que viva uma rotina repleta de rituais, Tadao afirma, trocando o “eu” por “a gente” no português, que leva uma vida normal. “A gente vive normal, igual vocês, a gente de manhã e de tarde reza, outras coisas igual vocês”, relata o monge.

Tímido, aos poucos o tadao se sente à vontade para mostrar a escrita japonesa. A dificuldade com a língua portuguesa foi o maior desafio enfrentado por ele. Apesar das falhas, fala, lê e escreve em português.

Sorridente, afirma já ter visto muitos adesivos escritos em japonês em que as palavras estão de cabeça para baixo ou pela metade. Para mostrar como se escreve em sua língua, pega o “suzuri” (pequena caixa), onde antigamente esfregavam o “sumi” (pedra de carvão) na água para fazer tinta. Segurando o “fude” (pincel) da maneira correta, em pé, escreve, como se desenhasse, a palavra “do”, que em japonês significa caminho (ou estrada) e possui grande importância para seu povo.

Do país de origem, o monge sente saudade de se reunir uma vez por ano com os colegas de escola. A principal diferença entre os dois povos, para Tadao, está na alegria do brasileiro, que contrasta com a seriedade do japonês. Na previsão do monge, daqui a 100 anos, tanto os aspectos culturais quanto os traços físicos das novas gerações de descendentes, serão perdidos. “É uma pena, mas acho muito difícil mudar esse caminho”, opina.

Centenário
A comunidade nipônica ribeirãopretana se reúne em duas associações distintas, que realizam atividades diversas relacionadas à cultura japonesa. Na Associação Cultural, presidida por Massaro Fugiy, os integrantes praticam Bon Odori (uma dança folclórica ao som de tambores), além de participarem de campeonatos de Karaokê. Na Associação Nipo, presidida por Teruo Abe, além da realização de gincanas e festas, pratica-se o Taikô (percussão japonesa). Anualmente, as associações se unem para a realização do conhecido Festival Tanabata, promovido em junho.

Para os presidentes das duas associações, transmitir a cultura japonesa, que vem de uma nação com 14 eras de história, para as novas gerações, é fundamental. Para as comemorações do centenário da imigração, as duas associações criaram a Comissão das Festividades do Centenário da Imigração Japonesa na região de Ribeirão Preto, presidida por Satoru Hojo. “Cem anos não são cem dias, precisam ser comemorados”, diz Satoru.

De acordo com o presidente, Ribeirão Preto possui cerca de cem “isseis”, que serão recepcionados com um almoço especial no dia 19 de junho. Uma enorme perda cultural identificada pelo presidente da comissão é a da língua. “Tentamos evitar o ‘analfabetismo japonês’ nas novas gerações, mas sem grande sucesso”, lamenta.

A arte do Taikô
Tradicional percussão japonesa, o Taikô se refere tanto à música produzida pelos tambores quanto aos instrumentos em si. Os taikôs, que são encontrados em diversas formas e tamanhos, já foram considerados um dos símbolos da comunidade rural japonesa, pois se dizia que o limite da aldeia era determinado também pela distância em que o som da batida era ouvido. A partir da década de 70, o instrumento se tornou mundialmente conhecido. Normalmente, o taikô pode ser visto em cerimônias religiosas, festividades, em academias de artes marciais e shows artísticos.

Em Ribeirão Preto, cerca de 30 pessoas de todas as idades integram o Grupo de Taikô Yukio Yamashita, formado em janeiro de 2004 através da parceria das associações Cultural e Nipo. O grupo atua coordenado por Massaro Fugiy, Otávio Nakajima, Ênio Uyeta e Paulo Nonaka. “A finalidade do Taikô é promover a integração de jovens e crianças, preservar a tradição e divulgar a cultura japonesa através desta arte, intimamente ligada ao desenvolvimento do espírito de equipe, disciplina, perseverança e harmonia”, afirma Massaro.

Todos os anos acontece um campeonato brasileiro, dividido em 3 categorias: Júnior, Livre e Master. Ribeirão Preto já conquistou o 3º lugar na categoria Livre em 2005 e 4º lugar na categoria Júnior nos anos de 2006 e 2007. Para Ênio Uyeta, a atividade promove a socialização dos jovens e emociona o público. “Quando nos apresentamos, surpreendemos as pessoas. No Taikô, as batidas marcam o ritmo do coração e transmitem este sentimento”, orgulha-se Ênio.

Judô
O professor de educação física Marcelo Irono começou a aprender a arte marcial aos três anos por iniciativa do avô, que contratou um mestre para toda a família. Aos 13 anos, Marcelo já dava aulas. Praticado em quase todo o mundo, o judô ensina a importância de ceder ao invés de medir forças. “No judô, a flexibilidade é usada para ganhar da força. O ensinamento se aplica a tudo na vida. É possível perceber que, cedendo, conquistamos muito mais do que brigando”, afirma Marcelo.
Outro benefício das artes marciais são os valores que elas ensinam, como respeito, disciplina, hierarquia, noções de socialização e higiene, além da importância de palavras como “obrigado” e “bom dia”. “Existe um ritual de cumprimento entre aluno e professor. Entre ambos, há um profundo respeito”, ressalta Marcelo. O professor afirma que a comercialização do esporte desvirtuou sua função social. “O clima de competição deturpou a beleza do esporte”, lamenta.

Bonsai
Mesmo não sendo japonês, Helenir Cândido conquistou o respeito da comunidade nipônica por seu trabalho com bonsai. A palavra “bon” significa vaso e “sai”, árvore. Helenir conta que foi por causa de uma reportagem que resolveu miniaturizar árvores. O começo foi muito difícil pela falta de informações. “Praticamente matei árvores durante cinco anos”, brinca.

O processo, no entanto, não é tão complicado. Se os passos básicos forem seguidos, o bonsai dura a vida inteira. Adubação uma vez por mês, poda dos galhos a cada três ou quatro meses, replantio a cada dois anos, exposição ao sol por meio período e água diariamente são as recomendações do profissional.
Os bonsais mais tradicionais são o pinheiro negro japonês e as figueiras. Os mais procurados, geralmente, são plantas que dão flores e frutos. Por demorarem a produzir frutos, os bonsais frutíferos possuem elevado valor de mercado. Para Helenir, o bonsai modifica o comportamento. “Durante os primeiros 10 anos, apanhamos da planta. Depois que erramos bastante, ela começa a falar de uma maneira silenciosa, pedindo o que precisa. O bonsai educa o cultivador, aguça sua percepção e o torna mais sensível”, explica o bonsaísta.

Qualquer tipo de prática da cultura japonesa se baseia na paciência, perseverança e respeito ao professor e às tradições. Assim, seja qual for a porta de entrada para esta cultura, as artes (como origami, ikebana, bonsai, taikô, judô), a culinária ou a religião, quem a conhece certamente alcança um ponto comum de harmonia e compreensão diferenciada do mundo.

LIVROS
Obras que abordam a história da imigração e da cultura japonesas:

A mata das ilusões
- De autoria de Massao Daigo com tradução de Sonia Regina Longhi Ninomiya, o livro narra a saga de um Unpei Hirano, um simples intérprete, que se torna líder e herói. Descreve o deslumbramento dos imigrantes com a imensidão da terra e da riqueza das florestas. A obra recebeu prêmio no Japão.

Memórias de um imigrante japonês no Brasil - O colono das lavouras brasileiras e depois artista plástico e ensaísta, Tomoo Handa descreve neste livro as condições geográficas e econômicas das fazendas ocupadas e minúcias do dia-a-dia dos imigrantes.

Os Japoneses - Célia Sakurai publicou pela Editora Contexto o livro que mostra de onde vêm as imagens cristalizadas que todos têm sobre o japoneses. Atravessa a história, o mito do milagre japonês, até o Japão pop de hoje.



Postado em 15 de Abril de 2011 às 14:04 na categoria Arquivo Y do blog Retalhos

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